
Houve um tempo em que o Homem enfrentou o universo sozinho e sem amigos. Agora ele tem criaturas para ajudá-lo; criaturas mais fortes que ele próprio, mais fiéis, mais úteis e totalmente devotadas a ele. A humanidade não está mais sozinha. Já pensou sobre essa questão desse modo?
O trecho acima é do livro “Eu, Robô”, de Isaac Asimov, um clássico da ficção científica. A IA contemporânea não possui (ainda) emoções como os robôs de Asimov, mas é capaz de imitar o raciocínio humano, analisando dados e identificando padrões e anomalias. Essas habilidades estão impulsionando avanços expressivos em áreas como engenharia, robótica e saúde.
Como exemplifica o físico e professor do Instituto de Física (INF) da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Cícero Cena, que coordena diversas pesquisas com uso de Inteligência Artificial.
“A Inteligência Artificial (IA) melhora a precisão do diagnóstico ao processar grandes volumes de dados espectroscópicos e identificar padrões sutis que podem passar despercebidos em análises convencionais.”
Esses dados espectroscópicos são informações obtidas por meio da espectroscopia -uma técnica científica que permite analisar como materiais absorvem, emitem ou refletem radiação em diferentes comprimentos de onda – e vêm sendo usados em pesquisas para detectar doenças.
Tecnologia e saúde animal
O Veterinary Meeting & Expo (VMX) é um dos maiores eventos internacionais da Medicina Veterinária, promovido pela North American Veterinary Community (NAVC). A feira reúne pesquisadores, estudantes e profissionais da área, sendo conhecida por antecipar tendências. Na última edição, realizada entre 25 e 29 de janeiro de 2025, na Flórida (EUA), a tecnologia foi protagonista. Segundo o médico-veterinário, ex-conselheiro do CRMV-PR e diretor fundador da Associação Brasileira dos Hospitais Veterinários (ABHV), Roberto Lange, que esteve no evento.
“A VMX 2025 mostrou que a Medicina Veterinária está se tornando cada vez mais tecnológica, mais especializada e focada no bem-estar animal e humano.”
Dentre as inovações, a Inteligência Artificial tem se mostrado uma aliada no cuidado à saúde animal, oferecendo soluções que contribuem para diagnósticos mais precisos.
“A IA permite a coleta de dados de forma contínua e oferece mecanismos para avaliar os dados em tempo real”. É o que explica o médico-veterinário, professor e pesquisador com doutorado em bem-estar animal, Adroaldo Zanella, que coordena o Centro de Estudos Comparativos em Saúde, Sustentabilidade e Bem-Estar na USP de Pirassununga.
Confira a seguir exemplos reais do auxílio da Inteligência Artificial na saúde animal e as vantagens para os profissionais da área.
Combate às zoonoses
A brucelose é uma zoonose contagiosa causada por bactérias do gênero Brucella. Em bovinos, a especie mais comum é a Brucella abortus, que causa abortos espontâneos, infertilidade e compromete o desenvolvimento dos filhotes, gerando prejuízos significativos para a pecuária em todo o mundo.
“Na atualidade, para diagnóstico oficial da brucelose em bovinos, é necessário a aplicação de um teste de triagem, seguido por testes confirmatórios. Esse encadeamento de técnicas, embora eficaz, pode retardar um diagnóstico definitivo em até 48 horas”, afirma o médico-veterinário e pesquisador Carlos Alberto do Nascimento Ramos.
O profissional atua em parceria com o professor do Instituto de Física da UFMS, Cícero Cena, em uma pesquisa para diagnóstico rápido da brucelose, que tem se mostrado promissora. “Conseguimos bons resultados no estudo inicial: mais de 92,5% de acurácia”, diz Ramos.
Nesse estudo, o tempo para o diagnóstico foi reduzido de 48 horas para cinco minutos. Os resultados foram publicados na revista Journal of Photochemistry and Photobiology. O grupo de pesquisa, liderado por Cícero Cena, já está desenvolvendo um novo projeto voltado à detecção precoce da tuberculose bovina.
Pecuária
A Inteligência Artificial também já é capaz de prever com precisão quais fêmeas bovinas estão férteis e têm maior probabilidade de prenhez, uma preocupação constante para criadores e profissionais da área.
“Para isso, analisamos pequenas alterações no perfil bioquímico do sangue das vacas, utilizando tecnologias modernas de análise espectral em combinação com algoritmos avançados de inteligência artificial”, detalha o pesquisador e médico-veterinário Gustavo Guerreiro Macedo, sobre seu trabalho em conjunto com o Instituto de Física da UFMS.
“Isso permite que os produtores façam manejos mais assertivos, selecionando os animais com maior potencial reprodutivo, reduzindo os custos operacionais e aumentando significativamente a eficiência dos programas reprodutivos nas fazendas”, destaca Macedo.
Melhoramento genético
A área de melhoramento genético animal sempre esteve alinhada ao uso de novas tecnologias – e a Inteligência Artificial tem sido uma ferramenta importante nesse campo.
O biólogo com mestrado e doutorado em Zootecnia e professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), Alan Miranda Prestes, afirma que “os geneticistas e melhoristas foram pioneiros na adoção da IA, devido à sua familiaridade com linguagens de programação e modelagem estatística”.
O professor explica que um dos marcos da genética moderna foi o desenvolvimento da técnica CRISPR-Cas9, que permite a edição de genes de forma programável. Integrando IA a esta técnica, é possível melhorar a edição do DNA, reduzindo o risco de mutações indesejadas.
Além disso, segundo Prestes, a IA facilita a seleção de indivíduos com características desejáveis, como resistência a doenças, maior capacidade de produção de leite e adaptabilidade a diferentes condições ambientais.
“A IA tem sido usada para desenvolver novos fenótipos que antes não eram mensuráveis ou para aperfeiçoar a coleta dos já existentes. Essa evolução impulsionou o surgimento da Zootecnia de Precisão, um campo promissor para profissionais da área”, pondera.
Zootecnia de precisão
A Zootecnia de Precisão é uma abordagem tecnológica e científica da Zootecnia que utiliza ferramentas avançadas, como sensores, sistemas de monitoramento, análise de dados e IA, para otimizar a produção animal de forma individualizada e eficiente.
Mas, de forma geral, a Zootecnia sempre esteve na linha de frente dos avanços tecnológicos, como lembra a zootecnista, Mariana Quintino do Nascimento, doutora em Animal Science e Modelagem Matemática pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com MBA em Ciência de Dados e Analytics pela USP.
“Como a Zootecnia sempre esteve na vanguarda do uso de tecnologias inovadoras, especialmente na genética, o setor está mais do que preparado para aproveitar todo o potencial da IA”, ressalta.
A profissional também destaca que a capacidade da IA de analisar grandes volumes de dados impactará diretamente a tomada de decisão de zootecnistas – desde o ajuste alimentar dos animais até “previsões” sobre o futuro.
“No mercado agropecuário, onde oscilações de preços podem impactar profundamente os lucros, a IA pode prever variações de demanda e recomendar os melhores momentos para compra de insumos e venda de produtos. A análise de risco sanitário também se torna mais precisa. Modelos de IA conseguem identificar padrões que indicam surtos de doenças antes que eles se tornem um problema generalizado, permitindo que medidas preventivas sejam tomadas com antecedência.”
Identificação e tratamento da dor
Perceber dor aguda em animais pode ser um desafio. Por isso, o médico-veterinário e docente da Unesp, Stelio Loureiro Pacca, coordena um grupo da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp, campus de Botucatu, que estuda dor e qualidade de vida nos animais.
O grupo desenvolveu e validou escalas de dor para todas as espécies domésticas, base para o aplicativo VetPain, disponível para Android e iOS. Atualmente, o grupo usa IA para facilitar e otimizar o diagnóstico da dor com base dessas escalas.
“Com a IA, por meio do aprendizado de máquinas, publicamos diversos artigos com modelagens otimizadas e rápidas utilizando o banco de dados que temos, para ranquear e identificar os comportamentos de dor mais importantes em cada espécie. Isso simplifica cada vez mais as escalas e agiliza as avaliações de animais que sofrem dor no dia a dia”, explica Pacca.
Animais de grande porte
Cavalos são animais que tendem a esconder sinais de dor para não demonstrar vulnerabilidade, como pondera o professor Adroaldo Zanella. O pesquisador usa modelos de IA em estudos voltados à avaliação de dor em equinos, por meio de um sistema computacional que mensura as alterações nas expressões faciais.
“As mudanças nas expressões faciais indicativas de dor são relativamente pequenas, dado ao fato que os equinos não demonstram expressão de dor exagerada para evitar predação. O sistema de Inteligência Artificial pode combinar várias medidas para efetuar um diagnóstico preciso”, afirma.
O grupo também desenvolveu um sistema computacional para avaliar claudicação em fêmeas suínas, e agora trabalha no desenvolvimento de sistemas inteligentes capazes de identificar e avaliar claudicação em vacas leiteiras e animais em rodovias.
Claudicação em animais é o termo usado para descrever uma marcha anormal, geralmente causada por dor, lesão ou problemas musculoesqueléticos. Em outras palavras, ocorre quando o animal manca ou evita apoiar totalmente uma das patas – sinal de que algo não está bem.
O professor fala mais um pouco sobre os projetos no vídeo abaixo:
Enciclopédia personalizada
Enquanto algumas soluções ainda estão em desenvolvimento nos centros universitários de pesquisa, outras já estão funcionando. Um exemplo é o Edmar, um agente de IA generativa baseado em um modelo conversacional, semelhante ao ChatGPT.
Criado pela empresa brasileira Biofy Technologies, o Edmar foi desenvolvido para respostas assertivas, auxiliando na interpretação de resultados de exames, na coleta de material e na resolução de dúvidas sobre doenças. Para garantir a confiabilidade das respostas, o Edmar é alimentado exclusivamente com informações relacionadas à saúde animal.
O principal usuário da ferramenta, lançada em outubro de 2024, é a Laudo Laboratórios, empresa de análises laboratoriais veterinárias do Grupo Laudo, ao qual a Biofy pertence. Entre 28 de outubro de 2024 a 02 de março de 2025, foram realizadas 1.766 sessões de consultas à plataforma.
Atualmente, o Edmar oferece respostas exclusivamente sobre doenças que afetam aves, maior demanda do grupo. Desenvolvida em português, a IA também é capaz de interagir em outros idiomas e já foi disponibilizada para os clientes do Grupo Laudo.
“Essa IA otimiza processos, melhora a tomada de decisão e permite uma gestão mais eficiente de recursos nos setores veterinário e laboratorial”, destacou o CEO da empresa de tecnologia, Paulo Perez.
Diagnóstico por imagem
A IA também começa a fazer parte do cotidiano em clínicas e consultórios veterinários. Um exemplo é a tecnologia SignalRAY, da empresa norte americana SignalPET, que usa aprendizado de máquina (machine learning) para analisar radiografias.
A ferramenta funciona por meio de um programa instalado no mesmo computador que abriga o software de raio-x. Ela acessa as imagens e sugere um laudo em poucos minutos. A médica-veterinária, clínica e anestesiologista Tatiana Carpinter, de Volta Redonda (RJ), comenta as mudanças percebidas após a adoção da tecnologia.
“Minha rotina de laudos radiográficos dependia de uma empresa terceirizada que nos enviava o tele laudo em 48 horas, agora, além de ter o laudo em cinco minutos, a IA também investiga diferenciais naquela imagem que poderiam passar despercebidos”, afirma.
Além da agilidade, a ferramenta também contribui para reduzir falhas de interpretação, segundo Tatiana. “Ela possui um banco de diagnósticos diferenciais e compara o normal com o anormal, além de apontar onde está a alteração, também traz um pequeno trecho explicativo e os diagnósticos diferenciais possíveis.”
Gestão mais inteligente
Os benefícios da IA para o bem-estar animal são diversos, mas a grande revolução ocorre principalmente na gestão clínica e no atendimento ao cliente.
É o que relata o consultor comercial e proprietário da clínica veterinária Pet Supremo, de São Paulo, William Danghesi Pereira, que utiliza a ferramenta VeterIA há cerca de três meses. O produto emprega a IA para automatizar o atendimento via WhatsApp.
“Você ensina a VeterIA a conversar com o responsável do paciente, hoje ela consegue conversar de uma forma natural e realizar agendamentos de consultas, vacinas e outros procedimentos”, afirma.
Outro ponto positivo, segundo ele, é a garantia de que nenhum cliente ficará sem resposta. “Com o aumento de mensagens via WhatsApp, algumas vezes podemos esquecer de responder. A VeterIA atende todas as mensagens e você pode programar para ela te avisar sobre algum assunto específico na hora do agendamento.”
O Futuro dos Profissionais na Saúde Animal
Ferramentas de IA são relativamente recentes na Medicina Veterinária e na Zootecnia, e ainda não há uma resolução específica do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) sobre o uso e os limites dessa tecnologia. No entanto é importante ressaltar que ela não substitui o papel essencial do profissional, nem o isenta de responsabilidade.
O médico-veterinário e pesquisador Stelio Pacca alerta: “A IA, como todas as tecnologias, tem o lado positivo e negativo. Como a IA é alimentada pelos seres humanos, ela é uma compiladora de informações também sujeita a erros, daí a necessidade do espírito crítico do usuário”.
Ao contrário das pessoas, sistemas de IA não tomam decisões por conta própria. Eles devem ser encarados como ferramentas complementares, que oferecem insights e otimizam processos, mas não substituem a experiência clínica, o conhecimento técnico ou a sensibilidade humana no cuidado com as pessoas e com os animais.
O professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), Alan Miranda Prestes, reforça essa perspectiva. “A IA deve ser vista como uma ferramenta, ou seja, um meio e não um fim. Assim, acredito que a IA não substituirá completamente o trabalho humano, mas será um grande suporte na tomada de decisões e no aumento da eficiência dos processos”, conclui.