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Clínica de felinos: queixas, manejo e questões comportamentais

4 minutos

A medicina felina tem ganhado crescente importância nas últimas décadas, acompanhando a intensificação do vínculo humano-animal e o reconhecimento das particularidades físicas e comportamentais dos gatos domésticos (Felis catus). No entanto, a prática clínica voltada a essa espécie ainda é desafiadora e exige do profissional um conjunto específico de habilidades, sensibilidade no manejo e atualização contínua. Neste texto, serão abordados os principais desafios enfrentados na rotina clínica de felinos, desde as queixas mais prevalentes até as dificuldades de manejo e comportamento no ambiente hospitalar.

Queixas clínicas mais comuns

As queixas clínicas que levam tutores de gatos a buscar atendimento veterinário podem ser agudas ou crônicas, mas, frequentemente, se apresentam de maneira insidiosa e inespecífica, dificultando a anamnese e o diagnóstico precoce. Entre as manifestações clínicas mais comuns estão:

1️⃣Perda de peso e alterações no apetite, frequentemente associadas a doenças endócrinas (como hipertireoidismo) ou doenças renais crônicas (Baral & Freeman, 2021);

2️⃣Vômitos e diarreia, que podem ser expressão de intolerâncias alimentares, doenças inflamatórias intestinais, parasitoses ou doenças hepatobiliares (Jergens et al., 2021);

3️⃣Alterações urinárias, incluindo disúria, hematúria e polaciúria, muitas vezes relacionadas à cistite idiopática (Chew et al., 2016);

4️⃣Tosse ou dispneia, que podem ser indicativas de asma felina, bronquite crônica ou efusões pleurais (Reinero, 2020);

5️⃣Comportamentos alterados, como reclusão, agressividade ou mudanças no uso da caixa de areia, frequentemente associados a dor, estresse ou doenças neurológicas (Rodan & Heath, 2016).

Além disso, muitas enfermidades felinas — como a doença renal crônica, hipertireoidismo e diabetes mellitus — apresentam-se de forma silenciosa e exigem monitoramento laboratorial periódico para diagnóstico precoce e intervenção eficaz (Sparkes et al., 2016).

Manejo físico no consultório

O manejo físico dos gatos no ambiente hospitalar é um dos principais desafios enfrentados pelos profissionais. Ao contrário dos cães, os gatos tendem a se estressar com maior facilidade em ambientes desconhecidos, barulhentos ou com excesso de manipulação.

Para minimizar esse estresse, é fundamental implementar princípios de uma clínica cat-friendly, que incluem:

🐈Ambiente separado e silencioso para felinos, com feromônios sintéticos e odores agradáveis;

🐈‍⬛Consultórios exclusivos para gatos, com uso de toalhas ou mantas macias que permitam contenção gentil e ofereçam segurança;

🐈Manejo baseado no mínimo necessário, evitando contenções forçadas e priorizando o uso de técnicas de contenção química, quando indicado (Carney et al., 2012);

🐈‍⬛Manipulação respeitosa e empática, com tempo suficiente para adaptação do animal ao ambiente.

Treinamentos frequentes da equipe e adoção de protocolos de baixo estresse são essenciais para garantir um atendimento eficaz e humanizado, tanto para o animal quanto para o responsável pelo animal (Rodan et al., 2011).

Desafios comportamentais

Os gatos apresentam comportamentos únicos que influenciam diretamente o diagnóstico, tratamento e acompanhamento clínico. Por serem animais territoriais, sensíveis a mudanças e com instintos de autopreservação apurados, podem mascarar sinais clínicos de dor e doença, dificultando o reconhecimento precoce de problemas (Buffington et al., 2016).

Muitos tutores ainda têm dificuldade em interpretar comportamentos felinos, o que pode atrasar a procura por atendimento. Isso inclui:

✔️Alterações sutis de apetite, sono ou higiene;

✔️Comportamentos como eliminação inadequada, que frequentemente têm causas médicas e não apenas comportamentais;

✔️Agressividade reativa, que pode ser expressão de dor, medo ou frustração.

O profissional que atua com felinos precisa, portanto, desenvolver habilidades de etologia clínica e comunicação assertiva com os tutores, ajudando-os a reconhecer e valorizar mudanças sutis de comportamento.

A adesão ao tratamento costuma ser mais difícil em gatos, especialmente em tratamentos orais prolongados. Estratégias como uso de formulações palatáveis, terapias transdérmicas ou monitoramento remoto por meio de aplicativos e vídeos enviados pelos responsáveis têm ganhado espaço como ferramentas valiosas (Sparkes et al., 2016).

A prática da clínica de felinos exige mais do que conhecimento técnico: demanda sensibilidade, empatia e respeito às particularidades da espécie. Os desafios são numerosos — desde o diagnóstico de doenças silenciosas até o manejo físico e comportamental —, mas o retorno profissional e afetivo é igualmente significativo. O reconhecimento dessas necessidades específicas tem levado à criação de programas como o Cat Friendly Practice, pela Feline Veterinary Medical Association (FelineVMA), que visam melhorar o bem-estar felino nas clínicas e promover uma medicina de maior qualidade (AAFP, 2023).

Com uma abordagem cuidadosa, conhecimento aprofundado e ambiente adequado, é possível oferecer aos felinos o atendimento que merecem — e aos responsáveis, a segurança de que seus companheiros estão em boas mãos.

Referências

AAFP (American Association of Feline Practitioners). Cat Friendly Practice® Program, 2023. Disponível em: https://catfriendly.com. Acesso em 21 jul. 2025.

BARAL, R. M.; FREEMAN, K. Feline hyperthyroidism: diagnosis and management. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, v. 51, n. 6, p. 1083–1101, 2021.

BUFFINGTON, C. A.; WESTROPP, J. L.; CHEW, D. J. Feline idiopathic cystitis: current understanding of pathophysiology and management. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, v. 46, n. 4, p. 711–725, 2016.

CARNEY, H. C. et al. American Association of Feline Practitioners feline-friendly handling guidelines. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 14, n. 5, p. 366–376.

CHEW, D. J.; BUFFINGTON, C. A.; KENDALL, M. S. Urologic disorders of the cat. In: LITTLE, S. August’s Consultations in Feline Internal Medicine, v. 7 [S.l.]: Elsevier, 2016.

JERGENS, A. E. et al. Feline inflammatory bowel disease: historical and contemporary perspectives. Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 35, n. 1, p. 27–40, 2021

REINERO, C. Feline asthma: diagnostic and therapeutic update. Topics in Companion Animal Medicine, v. 39, p. 100432, 2020.

RODAN, I.; HEATH, S. Feline behavioral health and welfare. St. Louis: Elsevier Health Sciences, 2016.

RODAN, I. et al.  AAFP and ISFM feline-friendly nursing care guidelines. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 13, v. 9, p. 606–614, 2011.

SPARKES, A. H. et al. ISFM consensus guidelines on the diagnosis and management of feline chronic kidney disease. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 18, n. 3, p. 219–239, 2016.

   

* Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista do CRMV-SP.

Archivaldo Reche Junior

Médico-veterinário graduado pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP), mestre e doutor em Clínica Veterinária pela FMVZ-USP (1993 e 1998). Possui especialização em felinos pelo American Board of Veterinary Practitioners (ABVP). Foi pesquisador na Universidade de Ohio (EUA), entre 1995 e 1997. É professor titular do Departamento de Clínica Médica da FMVZ-USP. Faz atendimento exclusivo a felinos na clínica de especialidades veterinárias VETmasters, em São Paulo (SP).
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